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Etiqueta: El Chaltén

Porque o mundo tem todo o tempo para mim

Era Outono. A Patagónia vestia-se de cores absolutamente extraordinárias. As Lengas (Nothofagus pumilio) cobriam-se de um manto malhado, mosqueado, todo ele remendado nas diversas cores. Uma espantosa paleta de tons nas cores amarela, vermelha, branca ou verde. Achei que nem mesmo um pintor, conseguiria aqueles tons. Eu, sozinho, munido de uma mochila às costas e de uma camara fotográfica ao pescoço, caminhava há algumas horas. Partira bem cedo de “El Chaltén” (pequena povoação na Argentina), com destino ao “Fitz Roy” (Cerro Chaltén).
O nome “Fitz Roy” provém da homenagem ao capitão do navio que levou Charles Darwin na sua volta ao mundo. No seu sopé existe uma lagoa muito bonita de nome “Laguna de los Tres”. Eu queria vê-la, fotografá-la, memorizá-la. Uma forma de enriquecer, não o bolso, mas a mente.

A meio do caminho, dou por mim envolto naquele manto malhado, mosqueado. A fotografia em cima é retrato disso mesmo. Mais parece uma pintura. As árvores (que morrem de pé) adornam-se com cores de outono. Algumas, já no fim de vida, deixam transparecer os ramos secos, velhos, brancos e negros. Nus. A longevidade da sua vida, deixa marcas. Nós, Humanos, somos parecidos. Tal como a árvore, podemos tentar minimizar as marcas que a vida nos impôs, cobrindo-nos de adornos. Mas seremos incapazes de apagar as marcas da longevidade.

Eu olhei ao meu redor e registei algumas fotografias. Qual memória para mais tarde recordar, como está a acontecer com este texto.
Minutos depois, desviei o olhar destas árvores e prossegui o meu caminho. De certa maneira há que prestar atenção e valorizar aquilo ou aqueles que nos rodeiam. Mas, a vida deve continuar. O caminho faz-se caminhando, disse-o o poeta espanhol António Machado. E eu concordo.

Duas horas depois, o meu olhar já só via tudo em tons de amarelo e vermelho. Dei por mim a tentar retirar os óculos de sol. Mas para meu espanto não os tinha comigo. Estava embebecido com todo aquele colorido. Era essa a realidade.

Uns passos mais à frente, começo a ouvir o barulho ténue de uma cascata. A água a correr pelos rios e ribeiros de alta montanha, deixa marcas nos ouvidos daqueles que admiram a natureza em silêncio. Tentei não fazer muito barulho com os pés. Hoje, penso que cheguei a levitar, pois só me lembro do claro som da água a correr por entre as pedras. Tentei vislumbrar por entre as Lengas, esse som. Ouvir com os olhos. Ver primeiro e ouvir depois. Procurar a imagem da água algures por detrás dos troncos velhos das árvores. O som confirmaria depois esse vislumbre. E assim foi. Serpenteei por entre as árvores e vislumbrei o Rio de montanha. Águas límpidas e selvagens. Corri na sua direção e só voltei a sentir os pés, quando dei por mim quase a cair à água.

Estanquei. Respirei fundo, enquanto retirava a mochila das costas. Peguei na camara fotográfica, (tive de a procurar pois já não a sentia ao pescoço) e registei esta fotografia. Uma, duas, três, quatro… Talvez umas duas dúzias delas, enquanto tentava respirar mais calmamente. Passada toda aquela emoção, sentei-me ao lado da mochila. E ali fiquei a ouvir a água. A ouvir o vento. A ouvir o Condor. A ouvir o balouçar das folhas nas árvores. Ver, era quase impossível, tamanho o êxtase. E deixei-me levar pelos sentidos. Impossível adormecer ali. Sozinho, ali fiquei até me lembrar de que tinha de continuar. O “Fitz Roy” era o destino final. Depois eu teria todo o tempo do mundo. Porque o mundo tem todo o tempo para mim.

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Patagónia – Subida ao Fitz Roy

No trilho para o Fitz Roy
Patagónia – No trilho para o Fitz Roy

O rio corria sem sossego por entre as pedras do vale. Em redor, árvores vestidas com os tons de outono cobriam todo o vale até meia encosta, onde já surgia a neve e, de súbito, imponente, o maciço rochoso do Fitz Roy. O pico, fantasmagórico no seu incessante jogo de escondidas com as névoas.
Nada substitui a experiência pessoal, cunho marcado da vivência in loco. O registo mecânico permite a guarda, para memória futura, de cada detalhe, elemento, pormenor. É um resgate feito ao passado, transmitido em herança às gerações vindouras. Mas a memória visual, mesmo que falível, mesmo que roída pelo tempo, é feita da vivência pessoal, intransmissível, incorruptível na essência – eu vi o Fitz Roy!

Posto a caminho, atravessei rio Blanco para chegar ao último acampamento antes de atingir a base do Fitz Roy: Camping Rio Blanco.

O sol ia alto e o calor inclemente era um braseiro que trazia sob a roupa; estava a ser tomado pelo cansaço. Obriguei-me a parar, descansar e a beber água, a hidratação é fundamental e eu não me esqueci dela durante os dias anteriores.

Um painel de madeira ali perto informava um quilómetro para chegar ao fim do trilho e sugeria ao leitor que verificasse o seu estado físico. Agora??? Depois de 11 quilómetros percorridos é que sou alertado para isto? Vim eu do outro lado do mundo para me atirarem este desaforo à cara? Se tinha chegado até ali, iria certamente percorrer o último quilómetro tal como havia feito os anteriores. Qual é a dificuldade?, atirei, altivo, em modo desafiador aos deuses da fortuna. Por um mísero quilómetro… Por quem me tomam?

Patagónia - Fitz Roy
Patagónia – Chegada ao Fitz Roy

Resoluto, a mastigar quezília, fiz-me à vida que não me atenho a pormenores. De súbito… estanquei. As árvores tinham desaparecido e o que se plantava diante dos meus olhos exauriu-me todas as forças: o trilho seguia montanha acima numa inclinação que de acentuada não tinha nada – tinha tudo!

Como uma cobra, serpenteava a encosta. Ah!, pois… admiti a custo: o tal quilómetro em falta!

Regressei a El Chaltén ao final da tarde

De regresso do Fitz Roy, cheguei a El Chaltén ao final da tarde, com 25 quilómetros de trilhos percorridos e vários quilos ás costas. Estava exausto, mas feliz.

As experiências mais enriquecedoras são dotadas de uma intensidade arrebatadora que galga o tempo, salta horas e derruba espaços transportando-nos numa viagem acelerada que comprime o tempo. Parece matéria de ficção científica, mas eu havia chegado no dia anterior à Patagónia e preparava-me para partir no dia seguinte; no intervalo, haviam decorrido 15 dias. Confuso? Não! Tudo havia sido grandioso, extasiante, fora de medida. Um caldo de emoções a necessitar de ser coado, filtrado e assimilado, tal era a sua densidade. E nessa espessura de sentimentos os dias foram tragados, diluídos, esquecidos.

Fiz a viagem de regresso a El Calafate pela mesma estrada que me havia levado a El Chaltén. O caminho foi todo ele feito de olho no espelho retrovisor; não é que não levasse os olhos postos na estrada, em condução segura, mas as memórias recentes já faziam adivinhar saudades futuras. Abandonava El Chaltén com a certeza de que haviam sido os melhores e mais produtivos dias que havia passado durante toda a estadia na região. Que trilhos memoráveis; a experiência marcante de me pôr à prova, física e mentalmente, e a superação conseguida.
Regressava mais forte, era uma certeza.

El Chaltén – Fitz Roy

Patagónia – The Tip Of The World – Levantei-me num ápice e engoli o pequeno almoço ainda mais rápido. Lancei-me desenfreadamente para o Monte Fitz Roy ou, como lhe chamam na região, Cerro Chaltén, tal como à povoação. É tão só uma das maiores montanhas localizadas na fronteira do Chile com a Argentina. Apesar da sua altitude relativamente baixa, cerca de 3.375 metros, é considerado por muitos alpinistas profissionais um desafio quase impossível de escalar. Percorri o centro da povoação a pé. O esforço acumulado dos dias anteriores ia cobrando os seus efeitos no aparente aumento de peso da mochila que carregava às costas. De mapa na mão, identifiquei o ponto de partida perfeitamente visível, pois tratava-se de um pórtico em madeira de cores vivas e garridas vistas a grande distância. Na manhã soalheira algumas nuvens bailavam ao sabor da leve brisa que soprava continuamente. O local, solene, mereceu fotografia de recordação. Desfiz-me de uma camisola, que o calor já se fazia sentir, acondicionei correctamente a mochila às minhas costas e avancei confiante para a encosta rochosa mesmo por cima de mim. Por se revelar mais seguro, optei por realizar um trajecto linear de aproximadamente 24 quilómetros, apesar de haver dois caminhos alternativos com base em pontos de partida diferentes, mas que se unem num só já muito perto do acampamento Poicenot. Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém…
Ao longo de todo o percurso estão identificados alguns miradouros de carácter oficial, simplifiquemos; no entanto, decidi aventurar-me fora do trilho em busca de pontos altos rochosos, aqui e ali surgidos por cima da copa das árvores. O objectivo era conseguir fotografias e planos em timelapse que retratassem o ondular das neblinas matinais junto aos picos das montanhas. Passado o acampamento, desço ao vale para chegar ao rio. Um breve relance de olhar e a percepção das óptimas condições de luz daquela manhã. As neblinas dançavam em redor dos picos mais altos, a água corria límpida e gélida o bastante para me despertar os sentidos quando refresquei a cara. A brisa fresca da manhã na pele e o regresso ao contacto com os elementos – não há nada mais “retemperador”. Fiz o registo de dois planos em timelapse, um vertical e outro horizontal, com o objectivo de os conjugar mais tarde. O rio corria sem sossego por entre as pedras do vale. Em redor, árvores vestidas com os tons de outono cobriam todo o vale até meia encosta, onde já surgia a neve e, de súbito, imponente, o maciço rochoso do Fitz Roy. O pico, fantasmagórico no seu incessante jogo de escondidas com as névoas. Nada substitui a experiência pessoal, cunho marcado da vivência in loco. O registo mecânico permite a guarda, para memória futura, de cada detalhe, elemento, pormenor. É um resgate feito ao passado, transmitido em herança às gerações vindouras. Mas a memória visual, mesmo que falível, mesmo que roída pelo tempo, é feita da vivência pessoal, intransmissível, incorruptível na essência – eu vi o Fitz Roy!

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