Foi no mês de Agosto, o mês das Senhoras
Artigo Vivacidade da edição de agosto de 2023
Foi no mês de Agosto, o mês das Senhoras. Minha avó agarrava-me pelo braço e furava a multidão. Não dava fé, havia deixado o tino lá atrás preso à figura sem tempo que esquadrinhava o terreiro da capela: fechava um olho para ver e deixava o aberto escondido por detrás de um aparelho com que fazia mira ao magote de aldeãos, como a caçadeira do meu avô apontada aos coelhos. Que estranha maneira de olhar. Foi num dia de romaria.
Anos galgados, recordo o momento em que fechei um olho para ver melhor a criação do mundo. Artífice menor, dediquei o meu espanto à arte encantatória de domar o tempo a cristalizar miradas. Um dia, encarando o Perito Moreno, percebi que a vida se esvai num contínuo: ora breve, ora furioso. Mas contínuo, tal como o glaciar consumido por si mesmo.
Aportei cais distantes; falei sem saber, ouvi sem perceber. Palmilhei sete léguas de terra e um oceano de baleias. Apontei ao bailado nos céus e não sei se vi anjos na neve. Fui ao Norte. Fui ao Sul. Percorri o deserto. Ouvi a Terra e o gado apascentado no regresso à corte. Semeei histórias, plantei pomares. Fiz-me à noite e às estrelas, outros mundos. Busquei lagartos, trasgos e olharapos. Domei moinhos, castelos, catedrais. Dormi à chuva, temporais. Demandei o mar. Abri velas aos ventos do levante e percorri a planície. Matei o tempo contando nuvens. Procurei o pássaro de ouro e encontrei o canto do rouxinol. Ofereceram-me mariposas, pão e vinho. Bebi com eles, trocámos verdades. Venci prémios, galardões; perdi no dominó – sou santo da casa! A lua espera-me cavalgando as montanhas e o sol morrente é um convite ao torpor. Perdi-me de mim ao encontrar o Fitz Roy e os amigos aguardam o meu regresso sentados à mesa.
Ilustração de Jorge Grator Ferreira (baseada em fotografia de Custódia Sousa) | Texto de Paulo Santos (baseado nas minhas histórias ao redor do mundo).